Justiça dá aval para plantação de maconha por associação com habeas corpus coletivo


Vladimir Chaves



Uma associação que reúne pacientes que fazem tratamentos à base de derivados da maconha obteve na Justiça o primeiro habeas corpus coletivo do país que inibe a prisão de seus associados após cultivo da planta.

O ineditismo da medida se dá pelo fato de o habeas corpus ser o primeiro para esse tipo de pedido concedido na esfera criminal. O HC coletivo é um instrumento processual que visa resguardar os direitos de um determinado grupo.

Desde a última sexta-feira (5), as Polícias Civil e Militar estão proibidas de realizar a prisão em flagrante dos associados e dos responsáveis da Cultive –Associação de Cannabis e Saúde, com sede na cidade de São Paulo.

Na prática, os integrantes da entidade não poderão ser presos pela realização do plantio e da produção de medicamentos à base de cânabis e nem por fornecer mudas da planta a seus associados que possuam ordem judicial para tal finalidade.

Em seu despacho, a juíza Andrea Barrea, do Departamento Técnico de Inquéritos Policiais e Polícia Judiciária, do Tribunal de Justiça de São Paulo, também proibiu a apreensão de equipamentos e componentes da cânabis utilizados pelos 21 associados da organização.

Todos os associados, segundo a magistrada, possuem laudos médicos que comprovam a necessidade do uso de substâncias extraídas da maconha para tratamentos contra epilepsia, dores crônicas, autismo e doença de Parkinson, entre outras.

Antes do habeas corpus coletivo favorável da Justiça paulista, as associações Abrace, Apepi e Canapse já tinham obtido na Justiça Federal da Paraíba e do Rio de Janeiro autorizações judiciais para cultivar maconha para fins medicinais -mas todas elas foram proferidas na esfera cível.

“Diferentemente das ações da esfera cível já promovidas, esta decisão representa o reconhecimento da Justiça criminal de que cuidar da própria saúde não pode ser considerado crime”, diz o advogado Ricardo Nemer, um dos integrantes da Reforma (Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas) que assinam o pedido de habeas corpus.

Os advogados da Reforma são os responsáveis por boa parte dos habeas corpus individuais que têm permitido em várias partes do país o uso da cannabis em tratamentos específicos.

Para a juíza, o HC movido pela entidade busca “a efetivação do princípio da dignidade, bem como dos direitos à vida e à saúde, os quais devem prevalecer sobre a proibição de se cultivar a planta de onde se extrai a substância utilizada especificamente para o tratamento dos pacientes em um contexto de necessidade, adequação e proporcionalidade”, escreveu.

A magistrada afirmou ainda que a inércia do Estado em criar legislação sobre o tema não pode servir de obstáculo à concretização do direito fundamental à saúde.

Barrea autorizou que a Cultive produza até 448 plantas de cânabis por ano, número suficiente para promover o fluxo contínuo do extrato da planta aos associados da entidade.

O cultivo, realizado até então na casa dos diretores da associação, era considerado irregular. Após o HC, ele passa a ser feito num espaço alugado, diz Fábio Carvalho, cultivador e diretor da entidade. “Com mais estrutura, conseguiremos mostrar que é possível ter um cultivo coletivo, artesanal e de muita qualidade a baixo custo para aqueles associados que não conseguem ou não sabem produzir.”

Nos autos, a Polícia Civil de São Paulo se mostrou preocupada com a fiscalização da plantação da cânabis sob a responsabilidade da Cultive, que pode atingir proporções muito maiores do permitido.

“[Também] não é possível desprezar eventuais desvios dolosos, culposos, ou até mesmo não intencionais, como em hipótese de furto ou roubo das substâncias por terceiros, tendo em vista o grande consumo dessa droga de maneira ilícita”, afirmou a Polícia Civil.

A PM afirmou que “a via estreita do habeas corpus exige prova constituída e do abuso de poder reclamado, o que não se percebe no caso”. O Ministério Público também disse que o pedido não deveria ser apreciado por meio de habeas corpus.

Mas a juíza Andrea Barrea entendeu que não existe indício de que o ato de semear, cultivar e dispor da maconha seja compatível com o crime de tráfico de entorpecentes. “Ao contrário, dos autos extrai-se que o cultivo da planta decorre de razões médicas e humanitárias, conforme se depreende dos relatórios médicos”, argumentou.

A Cultive terá de fornecer relatórios semestrais sobre a necessidade de continuação do tratamento, via cânabis, de seus 21 associados “a fim de obter renovação do salvo-conduto”. A plantação também passará por fiscalizações periódicas das autoridades policiais.

GUERRA JUDICIAL

Reportagem do jornal Folha de S.Paulo em 2019 mostrou que várias entidades defensoras do uso medicinal da maconha ingressaram na Justiça com ações para garantir o direito ao cultivo da planta por conta própria.

Isso aconteceu após elas terem sido excluídas pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) da proposta de regulação da cannabis para uso terapêutico.

As ações judiciais, como a da Cultive, têm base na lei 11.343, de 2006, que prevê que a União pode autorizar o plantio “exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados e mediante fiscalização.”

Essas iniciativas, porém, batem de frente com a posição do governo Bolsonaro (sem partido), que tem se declarado contrário à regulação do plantio de cânabis, e de instituições como o Conselho Federal de Medicina, que diz que faltam evidências científicas sobre o tema.

Desde 2014, no entanto, o conselho autoriza a prescrição de canabidiol para crianças e adolescentes com epilepsia refratária ao tratamento convencional.

A partir de 2015, a importação de óleos e extratos à base de derivados da maconha no país, como o CBD (canabidiol), é permitida pela Anvisa mediante apresentação de laudos e receita médica.

Mas os pacientes reclamam dos custos altos, o que faz com que muitos recorram ao autocultivo ou até mesmo ao mercado ilegal. 

Já outras substâncias, como o THC, ainda são vistas com ressalvas por terem efeitos psicoativos por outro lado, crescem estudos sobre efeitos terapêuticos da substância, presente no único medicamento já aprovado no país a base de cannabis, e indicado para esclerose múltipla.

As organizações também defendem que a produção artesanal de cannabis acaba por democratizar o acesso ao extrato da planta, considerado mais eficaz e seguro do que os compostos isolados.

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