Da queda do Império Romano à ascensão dos metacapitalistas: Olavo de Carvalho analisa as transformações sociais que culminaram na tentativa de controle do processo político-social por uma falsa aristocracia.
Desmantelado o Império, as
igrejas disseminadas pelo território tornaram-se os sucedâneos da esfrangalhada
administração romana. Na confusão geral, enquanto as formas de uma nova época
mal se deixavam vislumbrar entre as névoas do provisório, os padres tornaram-se
cartorários, ouvidores e alcaides. As sementes da futura aristocracia européia
germinaram no campo de batalha, na luta contra o invasor bárbaro. Em cada vila
e paróquia, os líderes comunitários que se destacaram no esforço de defesa
foram premiados pelo povo com terras, animais e moedas, pela Igreja com títulos
de nobreza e a unção legitimadora da sua autoridade. Tornaram-se grandes
fazendeiros, e condes, e duques, e príncipes, e reis.
A propriedade agrária não
foi nunca o fundamento nem a origem, mas o fruto do seu poder. Poder militar.
Poder de uma casta feroz e altiva, enriquecida pela espada e não pelo arado,
ciosa de não se misturar às outras, de não se dedicar portanto nem ao cultivo
da inteligência, bom somente para padres e mulheres, nem ao da terra,
incumbência de servos e arrendatários, nem ao dos negócios, ocupação de
burgueses e judeus.
Durante mais de um milênio
governou a Europa pela força das armas, apoiada no tripé da legitimação
eclesiástica e cultural, da obediência popular traduzida em trabalho e
impostos, do suporte financeiro obtido ou extorquido aos comerciantes e
banqueiros nas horas de crise e guerra.
Sua ascensão culmina e seu
declínio começa com a fundação das monarquias absolutistas e o advento do
Estado nacional. Culmina porque essas novas formações encarnam o poder da casta
guerreira em estado puro, fonte de si mesmo por delegação direta de Deus, sem a
intermediação do sacerdócio, reduzido à condição subalterna de cúmplice forçado
e recalcitrante. Mas já é o começo do declínio, porque o monarca absoluto,
vindo da aristocracia, dela se destaca e tem de buscar contra ela — e contra a
Igreja — o apoio do Terceiro Estado, o qual com isso acaba por tornar-se força
política independente, capaz de intimidar juntos o rei, o clero e a nobreza.
Se o sistema medieval
havia durado dez séculos, o absolutismo não durou mais de três. Menos ainda
durará o reinado da burguesia liberal. Um século de liberdade econômica e
política é suficiente para tornar alguns capitalistas tão formidavelmente ricos
que eles já não querem submeter-se às veleidades do mercado que os enriqueceu.
Querem controlá-lo, e os instrumentos para isso são três: o domínio do Estado,
para a implantação das políticas estatistas necessárias à eternização do
oligopólio; o estímulo aos movimentos socialistas e comunistas que
invariavelmente favorecem o crescimento do poder estatal; e a arregimentação de
um exército de intelectuais que preparem a opinião pública para dizer adeus às
liberdades burguesas e entrar alegremente num mundo de repressão onipresente e
obsediante (estendendo-se até aos últimos detalhes da vida privada e da
linguagem cotidiana), apresentado como um paraíso adornado ao mesmo tempo com a
abundância do capitalismo e a “justiça social” do comunismo. Nesse novo mundo,
a liberdade econômica indispensável ao funcionamento do sistema é preservada na
estrita medida necessária para que possa subsidiar a extinção da liberdade nos
domínios político, social, moral, educacional, cultural e religioso.
Com isso, os
megacapitalistas mudam a base mesma do seu poder. Já não se apóiam na riqueza
enquanto tal, mas no controle do processo político-social. Controle que,
libertando-os da exposição aventurosa às flutuações do mercado, faz deles um
poder dinástico durável, uma neo-aristocracia capaz de atravessar incólume as
variações da fortuna e a sucessão das gerações, abrigada no castelo-forte do
Estado e dos organismos internacionais. Já não são megacapitalistas: são
metacapitalistas – a classe que transcendeu o capitalismo e o transformou no
único socialismo que algum dia existiu ou existirá: o socialismo dos
grão-senhores e dos engenheiros sociais a seu serviço.
Essa nova aristocracia não
nasce, como a anterior, do heroísmo militar premiado pelo povo e abençoado pela
Igreja. Nasce da premeditação maquiavélica fundada no interesse próprio e,
através de um clero postiço de intelectuais subsidiados, se abençoa a si mesma.
Resta saber que tipo de
sociedade essa aristocracia auto-inventada poderá criar – e quanto tempo uma
estrutura tão obviamente baseada na mentira poderá durar.
Publicado no Jornal da
Tarde, 17 de junho de 2004
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