Se o PT pusesse fogo em
Brasília e alguém protestasse, a resposta viria rápida: onde você estava quando
Nero incendiou Roma? Por que não protestou? Hipocrisia.
Com toda a paciência do mundo, você escreve que ainda não era nascido, e pode atá defender uma ou outra tese sobre a importância histórica de Roma, manifestar simpatia pelos cristãos tornados bodes expiatórios. Mas é inútil.
Você está fazendo,
exatamente, o que o governo espera. Ele joga migalhas de nonsense no ar para
que todos se distraiam tentando catá-las e integrá-las num campo inteligível.
Vi muitas pessoas rindo da
frase de Dilma que definiu a causa do escândalo da Petrobrás: a omissão do PSDB
nos anos 1990. Nem o riso nem a indignação parecem ter a mínima importância
para o governo.
Depois de trucidar os
valores do movimento democrático que os elegeu, os detentores do poder avançaram
sobre a língua e arrematam mandando a lógica elementar para o espaço. A tática
se estende para o próprio campo de apoio. Protestar contra o dinheiro de
Teodoro Obiang, da Guiné Equatorial, no carnaval carioca é hipocrisia: afinal,
as escolas de samba sempre foram financiadas pela contravenção.
O intelectual da Guine´
Juan Tomás Ávila Laurel escreveu uma carta aos cariocas dizendo que Obiang
gastou no ensino médio e superior de seu país, em dez anos, menos o que
investiu na apologia da Beija-Flor. E conclui alertando os cariocas para a demência
que foi o desfile do carnaval de 2015.
O próprio Ávila afirma que
não há números confiáveis na execução do orçamento da Guine´ Equatorial. Obiang
não deixa espaço para esse tipo de comparação. Tanto ele como Dilma, cada qual
na sua esfera, constroem uma versão blindada às análises, comparações numéricas
e ao próprio bom senso.
O mundo é um espaço de
alegorias, truques e efeitos especiais. Nicolás Maduro e Cristina Kirchner também
constroem um universo próprio, impermeável. Se for questionado sobre uma
determinada estratégia, Maduro poderá dizer: um passarinho me contou. Cristina
se afoga em 140 batidas do Twitter: um dia fala uma coisa, outro dia se
desmente.
Numa intensidade menor do
que na Guine Equatorial, em nossa América as cabeças estão caindo. Um promotor
morre, misteriosamente em Buenos Aires, o prefeito de Caracas, Antônio Ledezma,
só e indefeso, é arrastado por um pelotão da polícia política bolivariana.
Claro, é preciso
denunciar, protestar, como fazem agora os argentinos e os venezuelanos. Mas a
tarefa de escrever artigos, de argumentar racionalmente, parece-me, no Brasil
de hoje, tão antiga como o ensino do latim ou o canto orfeônico.
Alguma evidência, no
entanto, pode e deve sair da narrativa dos próprios bandoleiros. Quase tudo o
que sabemos, apesar do excelente trabalho da Polícia Federal, veio das delações
premiadas.
Alguns dos autores da trama estão dentro da cadeia. Não escrevem artigos, apenas mandam bilhetes indicando que podem falar o que sabem.
Ao mesmo tempo que rompe
com a lógica elementar, o governo prepara sua defesa, organiza suas linhas e
busca no fundo do colete um novo juiz do Supremo para aliviar sua carga
punitiva. O relator Teori Zavascki, na prática, foi bastante compreensivo,
liberando Renato Duque, o único que tinha vinculo direto com o PT.
Todas essas manobras e
contramanobras ficarão marcadas na história moderna do Brasil. Essa talvez seja
a razão principal para continuar escrevendo.
Dilmas, Obiangs, Maduros e
Kirchners podem delirar no seu mundo fantástico. Mas vai chegar para eles o dia
do vamos ver, do acabou a brincadeira, a Quarta-Feira de Cinzas do delírio
autoritário.
Nesse dia as pessoas, creio, terão alguma complacência conosco que passamos todo esse tempo dizendo que dois e dois são quatro. Constrangidos com a obviedade do nosso discurso, seguimos o nosso caminho lembrando que a opressão da Guine´ Equatorial e´ a história escondida no Sambódromo, que o esquema de corrupção na Petrobrás se tornou sistemático e vertical no governo petista.
Dilma voltou mais magra e
diz que seu segredo foi fechar a boca. Talvez fosse melhor levar a tática para
o campo político. Melhor do que dizer bobagens, cometer atos falhos.
O último foi confessar que
nunca deixou de esconder seus projetos para ampliar o Imposto de Renda. Na
Dinamarca (COP 15), foi um pouco mais longe, afirmando que o meio ambiente é um
grande obstáculo ao desenvolvimento.
O País oficial parece
enlouquecer calmamente. É um pouco redundante lembrar todas as roubalheiras do
governo. Além de terem roubado também o espaço usual de argumentação, você tem
de criticar politicamente alguém que não é político, lembrar o papel de estadista
a uma simples marionete de um partido e de um esquema de marketing.
O governo decidiu fugir
para a frente. Olho em torno e vejo muitas pessoas que o apoiam assim mesmo.
Chegam a admitir a roubalheira, mas preferem um governo de esquerda. À direita,
argumentam, é roubalheira, mas com retrocesso social. Alguns dos que pensam
assim são intelectuais. Nem vou discutir a tese, apenas registrar sua grande
dose de conformismo e resignação.
Essa resignação vai
tornando o País estranho e inquietante, muito diferente dos sonhos de
redemocratização. O rei do carnaval carioca é um ditador da Guiné e temos de
achar natural porque os bicheiros financiam algumas escolas de samba.
A tática de definir como
hipocrisia uma expectativa sincera sobre as possibilidades do Brasil é uma
forma de queimar esperanças. Algo como uma introjeção do preconceito colonial
que nos condena a um papel secundário.
Não compartilho a euforia
de Darcy Ribeiro com uma exuberante civilização tropical. Entre ela e o atual
colapso dos valores que o PT nos propõe, certamente, existe um caminho a
percorrer.
Artigo publicado no
Estadão em 27/02/2015
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